Lei que proíbe cobrança de consumação mínima em estabelecimentos do estado completa 20 anos

Apesar de legislação, prática ainda é comum; falta de materialidade e de conhecimento sobre proibição dificultam fiscalização
31/07/2025 15:59 | Legislativo Estadual | João Pedro Barreto - Foto: Freepik

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Legislação completa 20 anos<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-08-2025/fg350300.jpeg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

"Eu fui no verão para Peruíbe e a consumação mínima para ficar no quiosque e usar as cadeiras era R$ 150. Só que eu não falei nada, achei normal. Consumi e paguei, porque, na minha cabeça, achava que ia gastar até mais e não sabia que era proibido, pensei que era praxe, algo já estabelecido." Esse relato é do porteiro Djalma Santos, mas que poderia ser de muitos outros paulistas. A cobrança de consumação mínima em bares, boates, restaurantes e outros estabelecimentos do tipo é proibida por lei há pelo menos duas décadas, mas segue acontecendo.

Criada e aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em 2005, a Lei 11.886 completou 20 anos em vigor e a fiscalização da norma segue sendo um desafio para as autoridades. Atualmente, a medida integra a consolidação da legislação relativa aos direitos do consumidor no estado, feita em 2023.

"Essa ilegalidade é comum. As pessoas acreditam que é algo que pode acontecer, que não tem nada de errado e que é a prática do mercado. Além da lei estadual, tem o próprio Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei federal e que proíbe também. A legislação estadual trata de questões específicas e traz um detalhamento que não está no Código federal. Isso é interessante porque aborda algumas situações que são perceptíveis e precisam de atenção no estado de São Paulo", comenta o advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Igor Marchetti.

Apesar de haver leis federais e estaduais tratando sobre o assunto, é comum encontrar pessoas que não conhecem a proibição. "Eu cheguei e para poder usar a mesa na praia, eu tinha que consumir alguma coisa no quiosque dele. E o valor não era baixo não. Como eram mais de cinco pessoas, ele falou que era em torno de R$ 150", conta a camareira Scarllat Oliveira.

O aposentado Jaime de Souza é outro que não conhecia a norma. Apesar disso, ele explica que costuma evitar estabelecimentos que fazem a cobrança de consumação mínima. "Quando existe esse tipo de prática, eu não frequento. O local obriga você a consumir aquele valor, que, muitas vezes, você não está disposto a gastar. Por isso, acho essa prática prejudicial ao consumidor de um modo geral."

Delivery

A cobrança de consumação mínima voltou a ser assunto recentemente. O Tribunal de Justiça de Goiás expediu, em fevereiro deste ano, uma decisão proibindo que um aplicativo de entrega cobre valor mínimo em pedidos feitos na plataforma. A decisão foi apresentada pelo Ministério Público do estado e valeria para todo o país. Além da proibição, a empresa foi multada em R$ 5,4 milhões.

"Um desses aplicativos já foi autuado. Está correndo o processo. A regra vale para todo mundo, tanto o comércio de rua quanto o comércio virtual. Não pode ter imposição. Ele pode cobrar a taxa de entrega, porque, com essa tarifa, vai cobrir o custo que teve, independentemente se o pedido é muito ou pouco", explica a assessora técnica do Procon-SP, Regiane da Costa Campos.

"A partir do momento que você se propõe a entregar na região e os produtos estão no cardápio, você não pode exigir consumação mínima. É, realmente, uma ilegalidade", complementa Igor Marchetti.

Ilegalidade

O entendimento dos especialistas é que a cobrança de um valor mínimo de consumação configura venda casada, prática que obriga a compra de um produto para que possa adquirir outro. "A partir do momento que se cobra o valor para fins de reversão de consumação, o que está implícito é uma consumação interna no estabelecimento. E isso faz com que o consumidor tenha que gastar muito mais do que deveria", explica Marchetti.

O especialista aponta ainda que não haveria problema se fosse cobrado um valor para entrar no estabelecimento, mas que a ilegalidade surge quando autoriza a entrada em troca de uma obrigação de consumo.

Regiane Campos acrescenta que a legislação federal proíbe a imposição de limites mínimos e máximos sem justa causa. "O consumidor não pode ser forçado a adquirir alguma coisa que ele não quer. Valor mínimo de compra, valor máximo de pagamento não são práticas regulares."

A assessora do Procon detalha ainda que tem acontecido uma mudança de comportamento no comércio. Alguns estabelecimentos dão a opção de escolha ao consumidor entre pagar a entrada sem consumação, ou não cobrar a entrada mediante a uma consumação mínima, o que não seria irregular. "Aí o consumidor vai ver o que ele quer consumir naquele dia, se compensa ou não compensa. A escolha é dele", comenta Regiane.

Consumo desarrazoado

Quando foi propor o Projeto de Lei 939/1999, o deputado Alberto 'Turco Loco' Hiar apontou como principal motivo o consumo acima do normal de álcool em casas noturnas, setor que, segundo Regiane Campos, apresentava o maior número de ocorrências há alguns anos. "A maioria dos consumidores para ?aproveitar? o valor que pagou, acaba por consumir bebida alcoólica em excesso. Sem dúvidas, com a aprovação desta propositura, a diminuição do consumo de álcool seria significativa, principalmente entre as pessoas mais jovens. O Estado existe precipuamente para organizar a sociedade, proteger a vida e garantir a integridade de seus cidadãos", dizia o parlamentar na justificativa da proposta.

Além de destacar os problemas causados pelo álcool ao corpo humano, Alberto Hiar citou ainda estudos sobre o consumo de álcool e a direção de veículos, apontando que metade dos jovens da época admitiam pegar o volante mesmo estando bêbados. A cobrança de consumação mínima seria, então, não só um problema dos direitos do consumidor, mas também em outros âmbitos da sociedade.

Mais de duas décadas depois, Igor Marchetti corrobora com o pensamento do deputado. "O estímulo de um consumo desarrazoado, que a pessoa não teria naquele local pode gerar problemas até de saúde pública, em alguns casos", afirma o advogado. "Ao invés de beber um drink, a pessoa pensa que para pagar a entrada vai ter que consumir seis. É uma postura, além de ilegal, também que não é razoável e saudável, até uma postura de má fé. Não garante o requisito de transparência entre consumidor e fornecedor", complementa ele.

Orientação

Para o consumidor, os especialistas apontam que algumas medidas são essenciais ao se deparar com essa prática em algum estabelecimento. Além de conhecer bem as leis e seus direitos, Regiane Campos orienta a tentar conversar com o comerciante para explicar que aquilo não é regular. "A gente não recomenda entrar no embate. Se não der certo na conversa, pega o comprovante de pagamento e pode registrar uma reclamação junto ao Procon", diz ela.

Regiane orienta também que é extremamente necessário que o consumidor guarde as provas da irregularidade. "É muito comum esse tipo de denúncia sem materialidade. A gente chega no estabelecimento, a pessoa fala: ?Não faço?. E aí fica a palavra de um contra a palavra do outro. Então é bem importante o pessoal guardar o ticket do cartão, guardar um cupom fiscal e juntar isso na reclamação", explica.

Igor Marchetti ressalta que, por mais que seja chato interromper um momento de lazer para reivindicar seus direitos, isso é essencial para que o Procon faça a devida fiscalização. "Uma fragilidade dessa lei é o fato do consumidor, muitas vezes, não querer enfrentar essa situação, ele está querendo se divertir, então essa ilegalidade vira algo comum. É desagradável, mas se isso não for feito, se não for gerado esse movimento, o mercado vai solapando a aplicação da lei e a gente vai absorvendo cada vez mais ilegalidades", defende ele.

alesp