Protagonistas na luta contra a ditadura, mulheres recebem Colar de Honra ao Mérito Legislativo
08/04/2024 19:04 | Sessão Solene | Fábio Gallacci - Fotos: Rodrigo Costa










Nos 21 anos de ditadura militar no Brasil, milhares de pessoas foram perseguidas, obrigadas a se exilar, torturadas ou mortas. Muitas desapareceram sem deixar rastros e suas famílias deram início a longas trajetórias por respostas, paradeiros e justiça. Entre essas pessoas estavam três mulheres que perderam seus maridos e, mesmo carregando a dor do luto, decidiram ser protagonistas de suas lutas e abraçar a busca pela redemocratização do País.
Eunice Paiva (in memoriam), Clarice Herzog e Ana Dias receberam, na sexta-feira (5), o Colar de Honra ao Mérito Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. A homenagem, considerada a mais alta honraria concedida pela Alesp, reuniu familiares, autoridades e amigos e foi solicitada pela deputada Beth Sahão (PT).
"Essas mulheres foram atrás da justiça, de poder responsabilizar os culpados pelos assassinatos de seus companheiros de vida. Isso tem que ser relembrado até hoje. São mulheres que merecem o nosso mais absoluto respeito e toda essa homenagem. Conceder essa medalha a elas é uma honra para mim", afirmou a deputada. "É também emblemático que a gente consiga fazer esse evento na semana quando lembramos os 60 anos do golpe; exatamente para reforçar que não queremos ditadura nunca mais. A Alesp é o espaço do debate e do amadurecimento político. Então, nada mais justo que esse seja o lugar para conceder essa comenda a essas mulheres", acrescentou Beth.
A deputada Monica Seixas do Movimento Pretas (Psol) também participou do evento. "O objetivo aqui é não esquecer para não repetir. É preciso lembrar que os assassinados pela ditadura deixaram suas famílias e também um legado de luta. A história e a justiça acerca dos desaparecimentos, assassinatos ou das mais diversas questões envolvendo esse período da história do País ainda não foram completamente contadas, conhecidas e justiçadas. Portanto, eu considero que a homenagem a essas mulheres é um marco para essa Casa que reafirma, mais uma vez, o seu compromisso com a liberdade democrática", disse a parlamentar.
Memória
Filho de Clarice Herzog, viúva do jornalista e professor Vladmir Herzog, morto pela ditadura em outubro de 1975, o engenheiro Ivo Herzog compareceu à Alesp para representar a mãe, que está acamada.
"Esse evento é muito simbólico porque, quando falamos desse período, a gente normalmente lembra das pessoas que morreram, desapareceram e foram torturadas. Mas também havia companheiras, mães, esposas, irmãs e filhas que dedicaram toda a sua vida pela justiça e pela verdade, que é uma das veias principais do processo de luta pela redemocratização do Brasil. Elas foram pouco lembradas durante todos esses anos. Então, eu acho essa iniciativa da Alesp louvável e importantíssima", apontou Ivo, ressaltando que a jornada de sua família ainda não chegou ao fim: "Mantermos a nossa memória é vital. Sendo assim, ainda falta, no caso do meu pai, que o governo brasileiro peça perdão pelo que fez e que investigue e processe os responsáveis", afirmou o filho de Vladmir Herzog, que tinha 9 anos de idade quando seu pai foi preso, torturado e morto nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo.
Clarice Herzog graduou-se em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo na década de 1960. Conheceu Vladimir Herzog, então estudante de Filosofia, em 1962. Casaram no civil em fevereiro de 1964. O casal mudou-se para Londres, onde nasceram seus dois filhos - Ivo e André - e retornou em 1968.
Viúva aos 34 anos, foi a primeira a romper o silêncio e dizer "Mataram o Vlado". Em plena ditadura, entrou na Justiça contra o Estado brasileiro com uma ação declaratória de culpa pela morte de Herzog. Em 1978, conseguiu uma sentença que condenou o Estado, obrigando-o a indenizar a família do jornalista por sua morte. Em 2013, 38 anos depois do crime, Clarice conseguiu a retificação do atestado de óbito de Herzog, não mais como suicida, mas como vítima da violência do Estado brasileiro.
Filmes e livros
O escritor, dramaturgo e jornalista Marcelo Rubens Paiva veio para representar sua mãe, Eunice Paiva, morta em dezembro de 2018, aos 86 anos. Ela era viúva do engenheiro civil e deputado federal Rubens Paiva, preso, torturado e morto pela ditadura em 1971, no Rio de Janeiro. "Voltamos a falar de um tema que nunca deveria deixar de ser abordado, que é a ditadura. Todos os males e tragédias que o Brasil viveu naquele período precisam ser relembrados para que não ocorram novamente. Eu preferia não ter sido vítima da ditadura, preferiria que não houvesse isso no Brasil. Mas aconteceu e a gente tem que lutar para que a sociedade não repita os mesmos erros", insistiu Marcelo. "A repressão política não mexeu apenas com as vidas daqueles que fizeram a luta armada ou que pertenciam a alguma organização clandestina, mas com todo o País. Milhares de pessoas foram presas, exiladas, torturadas e mortas. É preciso ter museu, filmes e livros sobre isso. Os judeus discutem o Holocausto constantemente, por exemplo. Todas as histórias humanas de violência e abuso precisam ser lembradas, assim como a escravidão e o genocídio indígenas no Brasil", completou o escritor.
Eunice Paiva, moradora do bairro do Brás, na Capital, teve papel central na busca por informações sobre o paradeiro de seu marido. Ela também chegou a ser presa ao lado da filha, Eliana, então com 15 anos. A mulher do deputado ficou 12 dias detida. Após a libertação, passou a exigir a verdade sobre o marido, e com a informação de que ele havia sido assassinado, reivindicou o reconhecimento de sua morte e a revelação de onde o corpo estaria enterrado (o que jamais descobriu), para que lhe pudesse prestar as honrarias fúnebres.
Em 1973, ingressou na faculdade de Direito. Conciliava a vida de mãe de cinco filhos com a rotina estudantil. Tornou-se advogada e se engajou em lutas sociais e políticas. Foi uma das principais forças de pressão que culminou com a promulgação da Lei Federal 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante a ditadura militar. Em 1996, após 25 anos de luta por memória, verdade e justiça, Eunice conseguiu que o Estado brasileiro emitisse oficialmente o atestado de óbito de Rubens Paiva.
Determinação
Ana Dias foi uma das principais lideranças dos movimentos de moradores da Zona Sul da cidade de São Paulo nos anos 1960, entre os quais os Clubes de Mães, as Comunidades Eclesiais de Base e o Movimento contra a Carestia. Seu companheiro, Santo Dias da Silva, foi morto pela Polícia Militar enquanto distribuía panfletos em favor de uma greve em frente à fábrica de lâmpadas Sylvania, em Santo Amaro, em 30 de outubro de 1979, durante a ditadura. Nascida em 23 de janeiro de 1943, Ana cresceu em Terra Roxa, Interior de São Paulo, e logo cedo, aos 7 anos, passou a ajudar a família na lavoura de café na fazenda da família Camargo Correia, onde trabalhavam em regime de quase escravidão. Foi ali que Ana conheceu Santo Dias, também funcionário da propriedade. Casaram-se em 1965 e mudaram-se para São Paulo, onde Santo começou a trabalhar como operário.
"Também estamos esperando um pedido de desculpas por parte do governo federal. Nossos maridos estavam lutando por um direito, que era de nós todos como trabalhadores e cidadãos que acreditam na Justiça. Mas a gente continua aqui, nos dias de hoje, para mostrar que somos contra toda essa opressão que existiu e que ainda existe", apontou Ana, pouco antes da Sessão Solene na Alesp. "Eu nunca parei a luta do meu marido. Recebemos ameaças para nos acovardar, mas fomos mais teimosos do que eles imaginavam. Muitas mulheres lutaram contra a ditadura, mas isso foi pouco percebido", lamentou.
Foi a determinação de Ana que impediu que Santo Dias fosse enterrado como desconhecido e se tornasse mais um desaparecido político. À revelia dos policiais, ela entrou no camburão que o levou para o Instituto Médico Legal, onde ouviu a intenção dos agentes de "se livrar" do cadáver do marido, já nu e sem identificação. "Eles iam esconder o corpo para, depois, dizer que ele havia sido morto por ser bandido; algo que nunca foi verdade. Ele estava sem aliança e documentos. Tinha 37 anos e eu 36, com dois filhos pequenos. Conseguimos recuperá-lo e fazer um terreno digno", lembrou a homenageada.
A missa de corpo presente de Santo Dias, celebrada por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo da Capital, foi realizada na Igreja da Consolação, com mais de 30 mil presentes. De lá, partiram em cortejo até a Catedral da Sé. A partir dali, Ana Dias começou uma peregrinação permanente para preservar a memória do esposo e exigir justiça. "Em todos os momentos em que a gente puder denunciar o que aconteceu, estaremos prontos para isso", garantiu ela, ainda muito lúcida, ao lado dos dois filhos.
Assista ao evento, na íntegra, na transmissão feita pela TV Alesp:
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