Do pão à pólvora: conheça os decretos que sustentaram a Revolução Constitucionalista de 1932

Em meio à guerra civil pelo fim do Governo Vargas e pela criação da Assembleia Constituinte, medidas emergenciais foram decretadas para apoiar tropas paulistas; legislativos estavam fechados desde 1930
09/07/2025 04:00 | Especial 9 de Julho | Gustavo Oreb - Fotos: Gabriel Eid, Acervo Alesp e Hemeroteca Digital/Bib. Nacional

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Tropas paulistas lutaram por uma nova Constituição<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg349001.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Revolução de 1932 completa 93 anos<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348976.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Pôster convocava paulistas para alistamento<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348977.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Pôster convocava paulistas para alistamento<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348999.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Ouro para o bem de SP/Diário Nacional 14/8/32 <a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg349019.jpeg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Mantimentos eram prioridade/ Diário Nacional 11/8<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348985.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Mantimentos eram prioridade/ Diário Nacional 11/8<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348987.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> MMDC virou símbolo/Diário Nacional 19/7/1932<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348974.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Aos donos de armas/Correio de S. Paulo 10/8/1932<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/N-07-2025/fg348973.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Isolamento político, economia enfraquecida, revolta popular generalizada e escassez de itens básicos de necessidade para a população. Tudo isso girando em torno de uma verdadeira guerra civil que deixou milhares de mortos e feridos. Essa descrição poderia remeter a diversos episódios históricos, mas dificilmente alguém pensaria em São Paulo. No entanto, era exatamente assim que se encontrava o estado há 93 anos, durante a Revolução Constitucionalista de 1932.

O levante dos paulistas, que buscavam derrubar o governo antidemocrático de Getúlio Vargas e estabelecer uma nova Constituição para o Brasil, marcou a memória coletiva do estado e de todo o país, resultando na data magna celebrada hoje. Mesmo durando apenas três meses - de 9 de julho a 2 de outubro daquele ano -, o conflito deixou cicatrizes que se tornaram parte fundamental da identidade de São Paulo, e suas consequências moldaram os rumos da política nacional por anos a fio.

A guerra, por si só uma circunstância atípica, impôs especialmente ao exército paulista muitas dificuldades para se organizar, angariar recursos e juntar forças para as batalhas na época. Ainda mais levando em conta a falta de apoio de outros estados da federação, que antes se faziam presentes como aliados da causa constitucionalista.

Tendo em vista esses obstáculos, então, as entidades políticas paulistas passaram a legislar por meio de decretos que incidiam diretamente na Revolução. Como os Legislativos estaduais haviam sido dissolvidos por Vargas em 1930, coube ao então interventor e depois governador de São Paulo, Pedro de Toledo, tomar as rédeas das normas que definiram o curso de todo o levante.

"Quando o conflito virou prioridade máxima, as autoridades precisaram ser criativas e recorrer a vários tipos de medida incomuns que chamassem a ajuda da população. E alguns decretos daquele período refletem muito bem isso", conta o historiador Allan Ferreira, servidor do Acervo Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

MMDC

Um dos mais emblemáticos entre esses decretos remonta, justamente, ao estopim da Revolução. Desde o golpe de Estado que alçou Getúlio Vargas ao poder, foram nomeados interventores federais para comandar os estados, o que desagradou, sobretudo, a elite política e econômica - ligada ao café - de São Paulo. Entre idas e vindas, protestos populares, três trocas de interventores e a formação da Frente Única Paulista (FUP), a tensão chegou ao seu máximo no dia 23 de maio.

Naquele dia, a população saiu em peso às ruas para uma manifestação no centro da Capital, e quatro jovens constitucionalistas morreram em um confronto contra os partidários do Governo Federal. Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, vítimas do incidente, tornaram-se símbolos do movimento contra Getúlio. Assim nasceu a sigla MMDC.

Depois do acontecimento, o MMDC deixou de ser apenas uma sigla de homenagem para se tornar o estopim, o nome da milícia do lado paulista e a bandeira do movimento. "Aquele fato trouxe as pessoas de fora das elites para perto da Revolução. Seja de forma passiva ou atuando ativamente, a população inteira passou a estar totalmente ligada ao conflito", destaca Ferreira.

Cartão postal homenageia Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo - Wikimedia Commons

As mortes causaram um efeito tão forte que, a partir daquele ponto, as tropas estaduais passaram a se fortalecer rapidamente por meio de campanhas de incentivo ao alistamento e à arrecadação de fundos. Os esforços culminaram no contingente expressivo de cerca de 10 mil combatentes no início da revolta armada, em 9 de julho.

Depois de se tornar símbolo da causa e reunir uma influência inegável, o MMDC, enfim, foi oficializado como entidade por meio do Decreto nº 5.627-A, de 10/08/1932, no auge da guerra. Esse reconhecimento permitiu à milícia maior flexibilidade de atuação, com uma sede estabelecida na Capital e comissões oficiais nos demais municípios, oferecendo liberdade para se articular politicamente e, dessa forma, alimentar ainda mais medidas para fortalecer suas tropas.

'Para o bem de São Paulo'

Entre as iniciativas mais bem-sucedidas que surgiram a partir dali a campanha publicitária intitulada "Ouro para o Bem de São Paulo" - estabelecida pelo Decreto nº 5.657, de 29/08/1932 - foi a de maior adesão do povo paulista, segundo Allan Ferreira.

"O objetivo principal era incentivar a doação de joias e objetos diversos feitos com metais preciosos, tais como ouro, prata e platina, para o financiamento das tropas do exército paulista. Quem contribuísse com as doações receberia um prêmio especial de alguma forma, como um anel, aliança ou medalha, por exemplo", acrescenta o historiador, que guarda, no Acervo da Alesp, um exemplar de uma das honrarias:

Anel guardado pelo Acervo Histórico da Alesp ressalta contribuições do povo paulista

Outra medida que reflete explicitamente a realidade vivida por São Paulo naquele período é o Decreto nº 5.625, de 07/08/1932. Nele, foi estabelecido a todas as pessoas que possuíssem Carabinas Winchester tipo 44 (uma espécie de rifle de repetição) a obrigatoriedade de declarar, dentro de um prazo de oito dias, a quantidade de armas guardadas em suas casas. Caso contrário, os equipamentos seriam apreendidos pelas Guardas Municipais e, por fim, aproveitadas no front.

"O decreto das carabinas é um exemplo perfeito para ilustrar a necessidade e a urgência que havia, naquela época, por parte do exército, de recorrer à população. Sabe-se lá o motivo, o que importava era que as pessoas poderiam ter esses armamentos guardados, sem propósito claro, e que ajudariam muito mais se estivessem na linha de frente das batalhas. Esse era o pensamento", explica Ferreira.

Jornal reforça necessidade de envio de armamentos para soldados do front/Diário Nacional 9/8/1932

Reforçando a necessidade de armar as tropas paulistas rapidamente, também foi instituída a Comissão Técnica de Material Bélico, através do Decreto nº 5.646, de 22/08/1932. A função principal do órgão era cuidar dos estudos e da produção do poder de fogo do lado constitucionalista, tanto é que, pouco depois, o Decreto nº 5.669, de 11/09/1932 criou, subordinado a ele, o Departamento de Pólvora de Guerra, para suprir a demanda da produção de munições.

Pão de guerra

Porém, nem só com armas se faz uma guerra. Antes de mais nada, o pão precisava chegar na mesa dos soldados e dos cidadãos. Assim, diante de um cenário de escassez de mantimentos, fronteiras fechadas e dificuldade das famílias para se abastecer, foi elaborado o Decreto nº 5.612, de 28/07/1932, que adotou a produção do "pão de guerra" em São Paulo.

Segundo essa norma, o pão especial deveria ser feito impreterivelmente com farinha de trigo, misturada a fubá de milho ou, no Interior, com raspas de mandioca. Entretanto, os ingredientes variavam de acordo com os estoques de trigo - ingrediente mais caro dos moinhos -, então, muitas receitas usavam farinha de aveia ou de banana para substituí-lo.

Decreto do pão de guerra buscava melhorar aproveitamento de insumos/Diário Nacional 31/7/1932

Outra preocupação que surgiu por conta da Revolução foram os estoques de combustível do estado. Mais especificamente, o consumo de gasolina recebeu diversas restrições na forma do Decreto nº 5.650, de 26/08/1932. Caso um cidadão comum quisesse abastecer seu veículo para fins comerciais ou industriais, por exemplo, ele precisaria de uma autorização do Governo para tal. Afinal de contas, as necessidades militares estavam acima de qualquer outro fim para os constitucionalistas, e a quantidade de gasolina era bastante limitada durante o conflito.

"Em um momento como esse, pensando na escassez devido às sanções que o governo Vargas implementou, é bem compreensível que os bens de consumo essenciais tenham sido tão regulados pela legislação. Se a guerra tivesse durado mais, dá para imaginar que seria ainda mais complicado para as pessoas se manterem, mesmo aquelas que não participaram diretamente", pontua Allan Ferreira.

Pós-Guerra

Como se sabe, a guerra não terminou bem para o lado dos paulistas. As tropas federais estavam mais bem preparadas e em maior número. Estima-se que, até o final da guerra, cerca de 40 mil combatentes tenham se juntado ao lado de São Paulo, contra desproporcionais 120 mil das tropas varguistas.

Os revolucionários chegaram a resistir por três meses, protagonizando embates intensos, sobretudo, na região estratégica do Vale do Paraíba, próxima de fronteiras com outros estados - inclusive, do Rio de Janeiro, antiga Capital do Brasil. Mas, a rendição, inevitável, chegou em outubro.

Mesmo assim, o levante não foi em vão. No ano seguinte, em 1933, houve, como consequência, uma eleição para a Assembleia Constituinte e, em 1934, foi promulgada uma nova Constituição brasileira. Consideram-se esses os resultados mais relevantes da Revolução de 1932. Dessa forma, seus defensores afirmam, até hoje, que este foi um movimento militarmente derrotado, mas politicamente vitorioso.

Como forma de reconhecimento, agradecimento e, até mesmo, de reparação de danos, quando o poder Legislativo Paulista voltou a atuar, diversas leis foram instituídas para apoiar os envolvidos na guerra mais importante da história do estado.

Alguns exemplos emblemáticos são: a Lei nº 2.541, de 10/01/1936, que estabeleceu pensões para os mutilados civis em decorrência da Revolução de 1932; a Lei nº 2.606, de 20/01/1954, que instituiu a doação, pelo estado, de lotes de terra do seu patrimônio aos participantes ativos da Revolução; e a Resolução da Alesp nº 194, de 06/09/1955, que criou a Medalha "9 de Julho", para condecorar os cidadãos mutilados em consequência de participação no movimento.

Medalha 9 de Julho foi instituída pela Alesp 23 anos após o conflito

"Isso tudo levanta o questionamento se era realmente justo envolver a população civil num conflito que, sabidamente, não seria vencido por meios militares", pondera Ferreira. "Todo esse levante sacrificou vidas, recursos e a economia de São Paulo. Mas, por outro lado, favoreceu uma causa muito nobre, do constitucionalismo, que acabou rendendo frutos extraordinários para a política brasileira", conclui o historiador.

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